Angolanas que casaram e levadas por maridos guineenses e nigerianos estão ser maltratadas
Os guineenses e nigerianos eram dono de cantinas em Angola, voltaram ao seu país com angolanas com promessa de torná-las rainha, oferecer boa vida. Hoje as angolanas nem em Angola conseguem voltar, são reféns e máquinas de fazer filhos.

Marcelina Domingos vive em Conacri há mais de dez anos, com um guineense, que lhe prometeu uma vida de rainha. Ahmed Diallo, o guineense, é proprietário de uma cantina num dos bairros de Luanda, onde conheceu a jovem. Fizeram amizade, começaram a namorar e, não tardou, surgiu o casamento. Após o nascimento do segundo filho, Diallo decidiu levar a mulher a Conacri.

Por alegada  dificuldade para tratar o passaporte angolano, Diallo convenceu a mulher a viajar com um Salvo Conduto emitido pelo consulado guineense em Luanda. Das palavras à acção foi um passo. Os primeiros dias foram uma verdadeira lua-de-mel. Não passaram muitas semanas para surgir o pesadelo. A mulher começou a ser  tratada como um simples objecto de prazer e mera "máquina” reprodutora.

Marcelina vive num clima permanente de medo, angústia e desilusão. Constantemente maltratada pelo marido, vê o mundo ruir sobre a cabeça. A vida que leva é igual à de muitas outras angolanas que casaram com guineenses ou nigerianos que praticam negócios em Angola.

Williana Okoie vive na Nigéria há catorze anos, levada pelo esposo.  Natural do Uíge e mãe de seis filhos, Williana enfrenta um  pesadelo tão grande, que já  pensou em cometer suicídio. O marido vive em Angola a cuidar dos negócios. Apesar da distância, sofre grande pressão psicológica de Okoie, o esposo, que a  obriga  a abandonar a casa por alegada prática de feitiçaria.

O  marido diz que os  negócios em Angola já não correm tão bem como no passado e culpabiliza a mulher. Williana é vítima de espancamento sempre que o marido se desloca à Nigéria. Dos seis filhos do casal, os três primeiros foram  recebidos pela família do marido, alegando que seriam enviados para uma outra região, com melhores escolas, para prosseguirem os estudos.

"Verdade ou mentira, o certo é que estou há dois anos que não vejo os  meus filhos”, desabafou.

A esta situação junta-se o facto de Okoie não prestar assistência à mulher e aos três filhos que com ela vivem.

"Sempre que ligo para ele, a resposta é disparate. Algumas vezes, sou obrigada a utilizar um número estranho, porque o meu ele não atende”, esclarece.

Vida de prisioneira

Arminda Marta  Baldé,  a  coordenadora da Associação das Mulheres Angolanas na Guiné, é uma das vozes activas na denúncia de maus tratos. Casada com um guineense há 20 anos  e residente em Conacri há dez, é das poucas mulheres do grupo  que goza de liberdade de movimento e não vive o mesmo drama.  É, no fundo,  a porta-voz das demais.

Encontrámo-la na residência da embaixadora Maria Cuandina  de Carvalho, em Conacri, numa tarde de convívio,  que juntou mais de uma dezena de angolanas. A maioria  das mulheres que estava no local vive a mesma situação, mas poucas têm coragem de  denunciar publicamente. O medo de represálias faz delas reféns. Preferem sofrer em silêncio.

Uma delas disse, quando a abordámos, que  aceitaria falar para a imprensa numa outra ocasião, num lugar discreto, sob anonimato, para despistar as companheiras,  para não ser denunciada ao marido. Aceitámos a condição, mas viria a desmarcar o encontro mais tarde.

Elas vivem como prisioneiras, diz Arminda Marta Beldé. Denuncia que até as deslocações à Embaixada são "escrutinadas” pelos maridos.

"Basta  saber que a mulher vai à Embaixada,  mesmo  para participar numa actividade  qualquer, o marido entra em pânico. Pensa logo que vai pedir ajuda para regressar ao país. Este não é o meu caso, mas a maioria das que aqui estão vive esta situação”, referiu.

Arminda Marta Baldé conta o caso de uma mulher que chegou mesmo a espetar-se uma faca, por maus tratos. Com a ajuda da associação e da Embaixada, referiu, foi já enviada para Angola.

A associação,  com mais de  450 mulheres inscritas, ajuda a localizar angolanas residentes na Guiné.  Fora de Conacri, foram localizadas mais de 150 e, dentro em breve, começam a ser legalizadas, já que muitas delas não possuem passaporte angolano.

"Muitas viajam apenas com salvo-conduto e, quando chegam à Guiné, têm dificuldades em se movimentar ou tratar documentos”, assinala.

Mas a situação das angolanas casadas com guineenses e outros cidadãos da África do Oeste tem contornos mais graves. Arminda Marta Baldé reporta casos de filhos de pais guineenses e de  mães angolanas que vivem em localidades distantes de Conacri, que não frequentam a escola e se  expressam apenas em língua local.

A maior parte dessas crianças, refere, é usada em actividades agrícolas pelos pais ou familiares directos. Destaca o caso de um um menino chamado Sapó, cujo pai o levou para a Guiné aos seis meses. Hoje, com 18 anos, manifesta interesse em regressar a Angola e a associação está a fazer tudo para enviar o rapaz de volta.

Maria Marta Baldé agradece o apoio da Embaixada  de Angola na solução dos problemas que muitas angolanas enfrentam. Aconselha as demais, que, em Angola vivem com guineenses, a não  viajarem com salvo-conduto para evitar constrangimentos.

Arminda Baldé é uma das vozes activas na denúncia de maus tratos e é das poucas que goza de liberdade de movimentos 

Um mercado a céu aberto

Quem disse que "quem conduz em Luanda pode conduzir em qualquer parte do mundo” enganou-se. A cidade de Conacri contraria este pensamento. Luanda está muitos furos abaixo da capital guineense  em termos de indisciplina e desorganização rodoviária.

A condução faz-se  de  qualquer jeito, desrespeitando as regras de trânsito. Todos têm pressa de chegar ao destino. O uso excessivo da buzina, as ultrapassagens  perigosas e a condução exageradamente  ofensiva deixam o passageiro  com o coração na mão. O número excessivo de  motorizadas, usadas para serviço de  táxi, aumenta a  confusão, numa cidade em que circular na contra-mão parece um acto normal.

Quem  sai do aeroporto de Conacri,  fica com  a impressão  de que está a entrar  num mercado a céu aberto. As barracas que ladeiam a rua que dá acesso à cidade, apinhada de  vendedores e compradores, fazem  recordar o Arreiou, no Hoji-ya-Henda, ou o extinto " Roque Santeiro”, tornando o trânsito ainda mais caótico.

Este cenário degradante faz de Conacri um verdadeiro pandemónio. Quem chega à capital guineense fica sem saber onde  começa e termina o casco urbano, onde fica o centro da cidade, porque por todo o lado o quadro é o mesmo.  A cidade, ruralizada e rústica, invadida pelo comércio informal acentuadamente desorganizado, é bem a imagem de um lugar que parou no tempo e no espaço. Não há dados estatísticos, mas um elevado número da população dedica-se à actividade informal.

Lambany

Mas esta imagem contrasta com a de Lambany, um bairro de luxo e em crescimento, onde vivem diplomatas, empresários e governantes. Com excelentes vivendas e ruas devidamente  organizadas, Lambany não tem nada a ver com  Conacri onde vive a maioria da população. No resto da cidade envelhecida, nota-se, entretanto, sinais de requalificação, com empresas chinesas a marcarem grande presença.

Em  Conacri, as  pessoas  movimentam-se sem o  uso da máscara facial.  Nos  transportes públicos, em  locais de maior concentração populacional, restaurantes e noutros estabelecimentos, raramente se vê alguém com este acessório. Mas nos grandes hotéis o uso da máscara é obrigatório.

Na rua, se vir alguém com máscara facial é estrangeiro.  A maioria dos guinneeses não acredita na existência da Covid-19. Apesar da resistência à máscara, as ruas  estão repletas de reservatórios de água para a lavagem das mãos.

A vida nocturna é muito intensa. Nem parece que se está perante uma crise sanitária. Nos  restaurantes e bares, a música é alta, particularmente ao fim-de-semana. Nesta altura do ano, a chuva é quase ininterrupta, o que faz da Guiné um país com enormes campos verdes.

Reportagem JA

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